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terça-feira, 23 de maio de 2017

#Mistérios

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Laerte-se e a Careca do Will Eisner

Posted: 23 May 2017 06:19 AM PDT

Tempo de leitura: 7 minutos

Ontem por acaso assisti ao documentário Laerte-se que tem no Netflix.

Laerte é o cartunista que declarou-se uma mulher transgênero quando já era um homem de meia-idade. Havia se casado – e se separado – três vezes. Já tinha três filhos quando resolveu que agora seria uma mulher.
Como sou fã do Laerte desde o tempo que ele desenhava na Circo, e já tendo lido praticamente a obra inteira dele, e conhecendo o Laerte ao ponto dele me deixar fazer um filme de um quadrinho chamado Moto publicado na Piratas do Tietê (Moto, o filme é uma obra nunca terminada porque pra isso não teve dinheiro, mas pra coisas assim sempre tem) .

Frame do meu curta em parceria com a Groia filmes de Juiz de Fora

Então eu fui animado para ver esse documentário, não apenas por ser fã do que ele já fez, mas por imaginar o que ele planeja para o futuro.

Decepção total e absoluta.

Entenda, não tenho absolutamente NADA a ver com o fato do Laerte resolver virar uma mulher depois do terrível evento da morte do filho dele. Eu sou fã do artista, e se ele se considera homem, mulher, sapo, cadeira, robô ou alien, estou – desculpe a franqueza – cagando. Não me interessa, não me diz respeito e de certa forma até me constrange saber como ele se depila ou que batom ele usa.


Eu fico decepcionado porque esse documentário “Laerte-se” não faz jus nem de longe ao puta artista fodão que ele é. O documentário cai no lugar comum e no caminho fácil de sentar em cima do potencial artístico e sua história profissional riquíssima, para ficar mostrando o Laerte pelado tomando banho ou enfiado num tubinho de lantejoulas dançando na rua com umas 80 drags travestis LGBTs ou seja lá qual for a sigla da moda agora.

O melhor momento desse documentário é quando o próprio Laerte parece dar um toque, “estou me repetindo. Estou falando do que eu já falei”.
Em vez de ser um documentário sobre o Laerte, é um documentário sobre como um cara resolve mudar de gênero e tudo que isso acarreta direta e indiretamente. Logo o que menos me interessa porque esse cara do documentário poderia ser qualquer um, qualquer homossexual ou travesti tem essas questões, “boto peito ou não boto?”, “minha família aceitou, não aceitou, mas me zoaram ou não”, enfim.
Até o subtexto ali é precário e óbvio. Uma casa bagunçada, uma residência em reformas, uma mudança que ecoa e reflete de certa forma as mudanças internas de seu proprietário…

A grosso modo, é como pegar um documentário sobre o Stephen King e passar mais de uma hora vendo ele elucubrar sobre o fato de ser praticamente cego, e falar de forma absolutamente superficial sobre o que realmente interessa a todo mundo, seus livros, sua arte, seu processo criativo. Você acaba e fica com um gosto de: “Porra, fui iludido nessa merda!”
Imagina pegar um documentário sobre o Will Eisner e ver que ele passa o filme inteiro falando sobre como é ser careca, quando ele ficou careca, e sobre como as pessoas acham que ele é careca, mas ele queria era ser cabeludo, e pensa se vai comprar peruca ou não vai, do papel social do careca…

Laerte-se é assim, é o caminho fácil, é o óbvio, é a apelação quase panfletária da causa Gay, da causa transsexual, do papel social… Coisa que daria para fazer com QUALQUER outro homem que resolve mudar de gênero.
Agora, como ele criou os Piratas do Tietê, como foi manter uma revista, qual a loucura de viver de quadrinhos nos anos 80, como era sua relação com outros artistas, Angeli, Glauco, Luiz Gê… Como ele/ela virou roteirista de programas como TV Pirata, Sai De Baixo e TV Colosso, drogas, aventuras, suas influências, livros que o marcaram… Qual material ele usa, de onde saiu a ideia para os “Homens Pizza”, os “Palhaços Mudos”… NADA disso existe em Laerte-se.

“Tem um lado exibicionista que fica feliz com isso, mas sugeri fazer um filme sobre ser transgênero, porque não queria que fosse só sobre mim, uma ego trip.” – Laerte

Inclusive mostra uma exposição dele e essa parte se limita a um lance dele sendo abraçado por fãs e dizendo que se considera uma fraude (um caso típico da síndrome do impostor) que corresponde a essa autopercepção pela qual uma pessoa se considera menos qualificada para uma determinada função, cargo ou desempenho que seus companheiros, e percebe sua criação como cheia de defeitos e problemas aos quais teme que em algum momento alguém perceba sua imperfeição. Obviamente que tudo isso é decorrente de um complexo de inferioridade que pode ter raízes profundas e inclusive ser um elemento constituidor daquele indivíduo, como as figurinhas feias que ninguém gosta, mas que querendo ou não, são uma parte integrante de um álbum de figurinhas, e sem as quais, ele nunca será efetivamente completo. Aliás, isso é um aspecto da personalidade absolutamente corriqueiro na ampla maioria dos artistas.

Mas de volta ao Laerte-se, a melhor coisa desse documentário é a animação de algumas poucas tirinhas, e ainda assim, tudo nesse contexto do conflito dessa imagem/gênero que tragou a vida dele para um loop eterno. É inegável que essas questões são importantes para ele e por isso transbordam no seu trabalho.

“Não sou transexual. Nunca me declarei assim. Estou sob um guarda-chuva que inclui a travesti, o crossdresser, a drag queen, o drag king, e estou satisfeita com isso.” – Laerte

Mas e a virada no trabalho que ele deu, mudando brutalmente não apenas a estética como sua atuação profissional? Limitado e monodimensional, o filme fala pouco ou praticamente nada nessa mudança no trabalho dele e o próprio Laerte dá a deixa perfeita para que isso seja explorado, mas a direção não morde a isca, não vai nesse sentido apesar da deixa. Ela se foca na questão da imagem, o que é curioso na medida em que o início do filme mostra Laerte meio que queixoso, meio inconformado com isso, e apesar de relutar se entrega, (mais de corpo que de alma)  ao exibicionismo de sua nova sexualidade.

Mesmo a parte que todo mundo sabe, que é o fato do Laerte sempre ter sido comunista, membro do partidão, ilustrador para a Cut, e outros sindicatos nem sequer é explorado, é dado um viés modernoso, quase de cima do muro, que um incauto poderia olhar e até pensar que Laerte é de centro.
Mas é inegável refletir sobre isso na perspectiva de que talvez, para a ampla maioria das pessoas seja muito mais importante ver o Laerte como uma bandeira de uma causa, (legítima, é verdade) em detrimento ao artista genial que está ali por trás, obliterado pela questão da eterna ressignificância social, que engolfa, traga tudo que ele foi e pior, tudo que ele será ainda.

Então é isso, não é o documentário que eu gostaria de ver e não faz jus ao protagonista, mas atende a um certo público. Pra quem sabe da existência dele mais pela Revista Caras do que pela revista Circo, ele serve bem.

O post Laerte-se e a Careca do Will Eisner foi criado no blog Mundo Gump.